
O Ministério Público do Trabalho (MPT) em Mato Grosso do Sul requereu, na Justiça, a expropriação da Fazenda Carandazal, localizada no município de Corumbá, e o pagamento de R$ 25 milhões por um dos proprietários, a título de reparação dos danos provocados à sociedade. Em fevereiro deste ano, quatro trabalhadores foram resgatados de condições semelhantes à escravidão na propriedade, localizada na zona rural do município, que faz fronteira seca com a Bolívia.
Os pedidos constam de uma ação civil pública, que tramita na Vara do Trabalho de Corumbá. O procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes pleiteia a concessão de tutela de urgência cautelar para que terceiros de boa-fé tomem conhecimento da ação e não sejam prejudicados.
Os autos narram as diversas evidências que apontam para uma sucessão de vítimas da escravidão na fazenda, que tem dois proprietários, Moacir Duim Júnior e sua esposa Cristiane Kanda Abe, ambos réus na ação. Para o MPT, o resgate destes quatro trabalhadores faz parte de uma longa história de exploração de mão de obra.
Expropriar a fazenda seria uma forma de promover uma punição justa à reiterada conduta de um dos proprietários, que é reincidente na prática da violação de direitos dos trabalhadores. A Carandazal deverá ser destinada à reforma agrária, enquanto a indenização por danos morais será revertida a instituições e projetos cuja atuação seja de interesse social, caso os pedidos do MPT sejam acolhidos pela Justiça.
Direito à propriedade
Ao pleitear a expropriação, o MPT defende que “o direito à propriedade só subsiste na medida em que ela cumpre sua função social (inclusive ambiental e trabalhista) e não viola a dignidade da pessoa humana. A partir do momento em que a função social é descumprida, o direito à propriedade deve ceder espaço para medidas aptas a restaurar a dignidade da pessoa humana violada”, descreve o procurador do Trabalho na ação.
A Constituição brasileira, continua, “dispõe sobre a expropriação como medida (punitiva, pedagógica e reparatória) a ser aplicada quando flagrado na propriedade trabalho em condição análoga à de escravo; haja vista a gravidade da violação à dignidade humana que é a submissão de trabalhadores à condição análoga à de escravo, e a reparação à comunidade por meio da partilha da terra rural deve ser imediata”.
Neste caso, a Justiça do Trabalho deverá notificar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar a integrar o processo como assistente litisconsorcial do MPT, ou seja, como parte interessada, considerando que a desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária compete exclusivamente à União.
Conduta reincidente
As evidências colhidas no curso de um inquérito civil, instaurado após o resgate dos trabalhadores, apontam para a reiterada conduta por parte de um dos réus, “marcada pela certeza da impunidade ou pela certeza de que eventual punição é de tal maneira branda que vale a pena prosseguir escravizando seus trabalhadores”, apurou o MPT.
Em agosto de 2015, um dos donos da Fazenda Carandazal recebeu cinco autos de infração da Fiscalização do Trabalho, sendo um deles por manter empregado sem registro e outro por deixar de fornecer Equipamento de Proteção Individual (EPI) aos seus empregados, exatamente como ocorreu durante o flagrante em fevereiro deste ano.
“Tal postura de menoscabo por certo decorre do grande lapso temporal sem qualquer nova abordagem, bem como pelo fato de que os baixos valores das multas trabalhistas acabam por soar como um estímulo ao seu descumprimento”.
Outro aspecto destacado nos autos são os depoimentos colhidos no curso do inquérito, e que demonstraram que o local onde os trabalhadores ficaram alojados já fora utilizado por outros grupos reduzidos à condição análoga à de escravo.
Ocultação do crime
A ação civil pública descreve, ainda, a tentativa deste proprietário da Fazenda Carandazal de ocultar o crime. A mais contundente demonstração veio da ordem do fazendeiro para que o grupo se escondesse e para que o barraco fosse destruído, quando foi informado sobre a presença da equipe de fiscalização. Todavia, considerando o deslocamento aéreo, a abordagem da equipe ocorreu antes que ele pudesse ocultar os vestígios do crime.
O MPT também reforça, nos autos, serem fartas as provas de que o proprietário rural tinha total ciência e consciência da condição aviltante à qual submeteu os trabalhadores resgatados, e agiu deliberada e decisivamente para manter esses trabalhadores em um ambiente inóspito, com a clara finalidade de mitigar seus custos com a mão de obra, em detrimento da dignidade das pessoas.
Em depoimento, tanto os trabalhadores quanto o capataz da fazenda afirmaram ter sido o proprietário quem forneceu a lona para montar o acampamento onde ocorreu o resgate.
Outro elemento que aponta o pleno domínio dos fatos pelo fazendeiro foi o fornecimento de motosserra aos trabalhadores, fato também confirmado pelo capataz e por todos os trabalhadores resgatados. E isso sem exigir que seus operadores se protegessem durante a operação da máquina, com o uso de EPIs, contribuindo decisivamente para elevar o risco de acidentes de trabalho.
Ademais, o MPT defende a tese de fraude à relação trabalhista, quando o fazendeiro sustenta que um dos trabalhadores resgatados seria o verdadeiro empregador dos demais, evidenciando a intenção dele de lucrar com a desproteção jurídica destas pessoas, negando-lhes o direito a carteira assinada e todos os demais direitos dela decorrente, como o descanso semanal remunerado, verbas rescisórias e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
Desamparo dos trabalhadores
Por fim, os autos descrevem a situação de desamparo na qual se encontram os trabalhadores resgatados até o momento, e que justifica a concessão da tutela de urgência. Desde o resgate, foram realizadas duas tentativas de se chegar a um acordo extrajudicial das questões cíveis e trabalhistas. Neste tipo de acordo, o empregador se comprometeria a não reincidir na conduta e, ainda, a quitar as verbas rescisórias e FGTS, bem como as compensações pelos danos morais individuais e coletivos causados.
Em ambas as audiências, além de não comparecer, enviando apenas representantes legais, o dono fazenda informou não haver interesse em assinar o acordo, sob a alegação de não ser ele o empregador, e que os trabalhadores resgatados seriam empregados de um terceiro, responsável pela contratação da equipe.
Considerando que as vítimas anseiam por um desfecho na esperança de, ao menos, receberem suas verbas rescisórias, o MPT orientou todos a aguardarem as notícias quanto ao andamento das ações judiciais a serem ajuizadas. Um dos trabalhadores chegou a entrar em contato com a instituição narrando enfrentar dificuldades financeiras desde que o resgate ocorreu.
Condenações
Além da indenização a ser paga a título de danos morais, o MPT também pede à Justiça a condenação do proprietário da Fazenda Carandazal, que é reincidente na violação de direitos trabalhistas, a quitar, em até dez dias, os valores referentes a rescisão contratual das vítimas resgatadas; a abster-se de admitir ou manter empregado sem o respectivo registro ou de submeter pessoas a regime de trabalho forçado ou à condição análoga à de escravo; e a garantir a realização de exames médicos em conformidade com os requisitos previstos nas normas regulamentadoras do trabalho.
Quanto aos pedidos relacionados aos dois proprietários da fazenda, além da expropriação, ambos devem fornecer aos trabalhadores rurais Equipamentos de Proteção Individual, de acordo com os riscos de cada atividade exercida e sem qualquer custo; disponibilizar aos trabalhadores água potável e fresca; áreas de vivência compostas de instalações sanitárias; alojamentos, com roupas de cama adequadas às condições climáticas locais; locais para refeição, ou adequado para preparo de alimentos; lavanderias; material necessário à prestação de primeiros socorros; promover treinamento a todos os operadores de motosserra e/ou motopoda e a todos operadores de roçadeira costal motorizada e/ou derriçadeira para utilização segura destas máquinas.