A partir de atuação da Fiscalização do Trabalho que resgatou 17 trabalhadores em situação análoga à de escravo em uma propriedade rural no município de Porto Murtinho, na fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai, o Ministério Público do Trabalho (MPT-MS), realizou, na última quarta-feira (10), audiência extrajudicial com o intuito de ultimar o pagamento das verbas rescisórias e demais direitos trabalhistas, com destaque para o dano moral individual, que somou mais de R$ 718 mil.
Além dos trabalhadores, a fazenda, que ocupa 15 mil hectares e atua no ramo da pecuária bovina, também deverá indenizar a sociedade no valor de R$ 500 mil, valor a ser destinado a uma ou mais entidades sem fins lucrativos ou projetos sociais. Consideradas as compensações pelos danos morais coletivos e individuais, a reparação a ser paga ultrapassa R$ 1,2 milhão.
Durante a audiência, realizada nas dependências da Vara do Trabalho de Jardim (MS), os trabalhadores resgatados foram orientados e ouvidos individualmente pelo procurador Paulo Douglas Almeida de Moraes e também puderam discutir com os representantes legais da propriedade rural os valores a serem recebidos.
Tendo em vista que a situação foi de trabalho escravo, o dano moral individual foi classificado como gravíssimo. O procurador do Trabalho esclareceu que o valor devido aos trabalhadores foi definido com base na gradação da legislação vigente que estabelece entre 20 e 50 vezes o valor do último salário recebido para o exercício da atividade na fazenda. Este parâmetro somente não foi aplicado para o cálculo das indenizações de dois trabalhadores menores de idade, que receberam o teto previsto na lei.
A audiência resultou na assinatura de Termo de Ajuste de Conduta (TAC), no qual, ao longo de cinco cláusulas, o empregador se comprometeu e já depositou os valores devidos nas contas bancárias indicadas pelos trabalhadores. “A rapidez da reparação decorreu da postura proativa da fazenda que, reconhecendo a gravidade da situação, colaborou decisivamente com os trabalhos”, avaliou Paulo Douglas de Moraes.
Além do acordo quanto aos danos morais individuais e coletivos, novo TAC, este relativo às condições do ambiente do qual os trabalhadores foram resgatados, será pactuado posteriormente pelo MPT e os empregadores, que deverão se abster de reincidir na conduta, além de providenciar alojamentos, alimentação e condições laborais em conformidade com a legislação. Esta etapa está condicionada ao fornecimento dos autos de infração pela Fiscalização do Trabalho, que realizou o flagrante.
Um olhar sobre as famílias
Na sala de espera da audiência, pairava entre os trabalhadores a inquietação e expectativa de reparação por semanas de um trabalho pesado e indigno. Entre eles, seis de nacionalidade paraguaia e nove indígenas das etnias Guarani Kaiowá e Kadiwéu, oriundos dos municípios de Bela Vista e Porto Murtinho.
Por intermédio do Ministério Público do Trabalho e aporte da fazenda, foi possível que os 17 resgatados da propriedade, no dia 15 de dezembro de 2020, comparecessem à audiência. E.M., de 15 anos, foi aliciado para a atividade em Bela Vista, onde reside, e, acompanhado do irmão mais velho, de 27, passou a morar no trabalho. Ali, fazia a aplicação de agrotóxicos para limpeza do pasto. Com a indenização, pretendem realizar o sonho da mãe, que pela primeira vez, aos 49 anos, irá morar em uma casa própria e de alvenaria.
Outro menor resgatado, o indígena Kaiowá E.I., de 14 anos, é órfão de mãe e desconhece a localização do pai. Contou com a ajuda da avó para as providências quanto ao recebimento dos direitos trabalhistas. O labor na fazenda, conta ele, foi necessário para comprar comida para a família. Superada a pandemia de Covid-19, o menino espera poder voltar a frequentar a escola e, com um trabalho digno, ajudar a avó idosa no sustento da casa.
G.A.J, 23 anos, trabalha desde os 12, quando aprendeu a domar cavalos, conta ele, em fazendas da região de Jardim, onde nasceu e cresceu. Parte da indenização será destinada à reforma da casa da mãe, que é viúva, e o restante faz parte dos planos de ter uma vida melhor fora da zona rural.
Escravidão contemporânea
Somente em 2021, 25 trabalhadores já foram resgatados de condições análogas às de escravo em propriedades rurais de Mato Grosso do Sul. Em 2020 foram 63 trabalhadores, também na zona rural, incluindo os 17 que receberam as indenizações durante a audiência em Jardim.
Os resgates são realizados pela Superintendência Regional do Trabalho, com apoio de instituições como a Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar Ambiental e Ministério Público Estadual e, no ano passado, motivaram a celebração de cinco Termos de Ajuste de Conduta (TACs) com empregadores que se comprometeram a ajustar condutas irregulares e oito Ações Civis Públicas (ACPs) ajuizadas pelo MPT-MS, entre outros procedimentos.
A Lei Áurea aboliu a escravidão em 1888, o que significa que desde então a legislação brasileira não reconhece o trabalhador como posse do empregador. Porém, ainda perduram práticas que configuram trabalho análogo ao de escravo, previstas no artigo 149 do Código Penal brasileiro.
São elas: condições degradantes de trabalho, como alojamentos precários, condições insalubres e falta de saneamento básico; jornada exaustiva, com longas turnos de trabalho que acarretam danos à sua saúde e segurança; trabalho forçado, quando a pessoa é mantida no trabalho isolada geograficamente, recebe ameaças e sofre violências físicas e psicológicas; e servidão por dívida, quando o trabalhador fica preso ao serviço por causa de um débito ilegal.