Nota do WWF entregue na COP27 relaciona soja ao desmatamento

Uma nota técnica inédita do WWF, entregue aos negociadores climáticos da ONU, reunidos no Egito para a COP27, adverte que a meta de 1,5ºC do Acordo de Paris não será cumprida sem a participação dos produtores agropecuários.

O trabalho aponta que a cadeia de produção de alimentos contribui com, pelo menos, um terço do total de emissões líquidas dos gases de efeito estufa que estão mudando o clima do planeta. Isso significa que as emissões do sistema alimentar têm que diminuir em mais de 80% até 2050 para evitar que as gerações futuras vivam em um planeta hostil.

“A produção geral de alimentos precisará aumentar para atender à demanda de uma população global crescente. E as emissões precisarão diminuir para manter o balanço dos gases de efeito estufa em patamares alinhados com um futuro de 1,5ºC”, adverte o gerente de Políticas Públicas para Cadeias Livres de Desmatamento e Conversão da Rede WWF, Jean François Timmers.

“Essas metas de redução de intensidade de emissão exigem que a conversão de terras relacionadas a commodities diminua progressivamente até que seja eliminada em 2030”

O documento afirma que três commodities respondem pela maior parcela de desmatamento e conversão de ecossistemas naturais, e estão relacionadas com altos níveis de emissões, assim como a outros grandes impactos naturais decorrentes da produção de alimentos: pecuária, óleo de palma e soja.

Juntas, as três representam cerca de 1/4 das emissões do setor global de alimentos. O WWF calculou a pegada de gases de efeito estufa dessas atividades produzidas em áreas desmatadas na comparação com produtos livres de desmatamento. No caso da soja, a diferença é de 13 vezes; na carne, de 11 vezes.

“A soja, a carne bovina e o óleo de palma têm emissões tão altas que, caso não sejam reduzidas urgentemente, não permitirão a esses setores performar adequadamente nas agendas climática e de biodiversidade”, destaca o líder da Estratégia de Conversão Zero do WWF-Brasil, Frederico Machado.

Assim, para o alcance de commodities ‘neutras em carbono’, não será possível compensar emissões associadas à produção e à mudança do uso da terra sem o devido endereçamento do principal fator de emissões, a conversão e o desmatamento de ecossistemas naturais, como vem ocorrendo no Cerrado e na Amazônia.

Conversão de ecossistemas

A conversão dos ecossistemas para dar espaço à expansão dessas três commodities é responsável por aproximadamente 40-50% das emissões da categoria mudanças de uso da terra para finalidades agropecuárias, e cerca de 9-12% das emissões totais dos sistemas alimentares. Sozinha, a conversão da vegetação nativa em pastagens é responsável por cerca de um quinto da pegada total da pecuária.

A conversão de terras para produção de soja, por sua vez, é responsável pela maior parte de sua pegada total e responde por algo entre 5% e 14% das emissões de uso da terra de todo o sistema alimentar. Outro desafio global é a contínua perda de biodiversidade global, 70% da qual está diretamente associada à mudança no uso da terra.

A análise do WWF mostra que deixar de fora o cálculo das emissões relativas ao desmatamento não permitirá ao setor de commodities agropecuárias o alcance da meta de 1,5ºC.

Assim, ignorar as emissões relativas às mudanças no uso da terra excederia as metas de 1,5ºC em 3 Gt CO2eq em 2030 e mais de 30 Gt CO2eq em 2050 para carne bovina; 1,3 Gt CO2eq em 2030 e 5,2 Gt CO2eq em 2050 para óleo de palma; e 2 Gt CO2eq em 2030 e 15 Gt CO2eq em 2050 para soja.

“A cada ano em que vemos o desmatamento crescendo, comprometemos nossa capacidade de alcançarmos a meta de 1,5ºC do Acordo de Paris”, salienta Jean François Timmers

Ferramentas de monitoramento

A nota técnica do WWF descreve ainda as ferramentas de monitoramento à disposição das indústrias de alimentos e assinala a importância da rastreabilidade das compras de commodities, de forma a garantir que produtos oriundos de áreas recentemente desmatadas não sejam adquiridos e, assim, deixem de estimular a continuidade da destruição.

A nota também alerta para o risco de dupla contabilidade: compensações por desmatamento evitado e certificados de produtos livres de desmatamento contam duas vezes. Por isso, a organização ambiental demanda à indústria de alimentos a definição de compromissos e estratégias críveis e transparentes de redução de emissões de carbono.

Um dos pontos mais relevantes para a efetividade desses compromissos é o estabelecimento de datas de corte e de datas-alvo para a total implementação dos compromissos (target date). A primeira refere-se a uma data no passado a partir da qual o desmatamento e a conversão não são mais permitidos nas cadeias de suprimentos. Por exemplo, a Moratória da Soja da Amazônia estabeleceu uma data de corte em 22 de julho de 2008, o que significa que toda a produção de soja em terras desmatadas ou convertidas após essa data não pode ser comprada pelas traders de soja e demais elos do mercado.

De acordo com o Accountability Framework e com o WWF, datas de corte estabelecidas em compromissos corporativos não podem ser posteriores a janeiro de 2020. E caso existam datas de corte já definidas, em compromissos ou acordos anteriores (como é o caso da Moratória da Amazônia), essas datas devem ser respeitadas e mantidas.

2025: data limite

A data-alvo, por sua vez, é o momento no futuro próximo em que toda a cadeia de suprimentos estará livre de desmatamento e conversão. Para deter o aquecimento global e seus efeitos colaterais, esta data deve ser o mais breve possível, e não poderá ser posterior a 2025 – de acordo como o Accountability Framework.

A modelagem do WWF mostra que quando a eliminação da conversão é adiada até 2030 – mesmo que as fazendas estejam trabalhando para reduzir drasticamente as suas emissões – a pegada de gases de efeito estufa dessas três commodities resultam em um excesso cumulativo de 6 Gt CO2eq, até 2030 e de mais de 50 Gt CO2eq, até 2050.

Para se ter uma referência, esses volumes de carbono superam as emissões totais da maioria dos países, exceto os cinco principais emissores. Além disso, o desmatamento e a conversão danificam os ciclos hídricos locais e a resiliência agrícola, o que pode estimular ainda mais a destruição de habitats e a perda de meios de subsistência.

Brasil tem vantagens sobre outros países

O Brasil tem condições de enfrentar esse desafio com mais tranquilidade do que seus concorrentes, de acordo com a nota do WWF. O país já conta com programas de agropecuária de baixo carbono, como o Plano ABC. E possui um estoque de terras degradadas ou mal aproveitadas que permitirá expandir a produtividade agropecuária sem a necessidade de conversão de áreas nativas.

Segundo dados do MapBiomas, pastagens ocupavam 154 milhões de hectares em todo o Brasil em 2020 — praticamente a mesma extensão do estado do Amazonas. Desse total, estima-se que mais da metade esteja abaixo de sua capacidade produtiva, e que parcela significativa (22,1 milhões) se encontra em estado de severa degradação.

“A agropecuária sem desmatamento, associada com práticas de agricultura regenerativa, reabilitação de pastagens degradadas e à restauração de ecossistemas, permitirá manter o crescimento do agronegócio brasileiro, garantir sustentabilidade no longo prazo e melhorar a reputação da produção do país no exterior; não havendo a necessidade de desmatar nenhum hectare a mais”, afirma Frederico Machado.

Canal Rural*